A Hora do Jazz (último capítulo)

A Comédia em Pé do Meu Amigo aconteceu em outubro de 2012, numa quarta-feira à noite, no café rock’n’roll da viúva de M. Tinha umas trinta pessoas lá dentro, como sempre.

Meu amigo aparentava tranquilidade antes de subir ao palco. Perguntei se não sentia falta de Keiko e dos meninos num momento tão grandioso, e ele respondeu que só Keiko sabia do momento grandioso, e que ela já estava dormindo quando ele ligou, e que a resposta dela foi tão natural que ele achou absurdo. E ligou novamente para perguntar se Keiko tinha entendido direito, e ela riu e disse que sim, que fizesse

isso mesmo, esse número com Bóris e Nigel, e se livrasse do peso. “Que peso? Não sei. Ela estava dormindo”.

Meu amigo vestia preto da cabeça aos pés, e eu pensei que devia ser por causa do contraste com a luz e o fundo, para que só ficasse no ar a força da piada na sua cara redonda e peluda.

A viúva de M. trouxe um raminho de flores para ele no camarim. Era um lugar apertado, “igual o templo do pai de Keiko”, ele disse.

A plateia era composta por alguns amigos e poucos desconhecidos, dois ou três fãs entusiasmados. Um deles segurava nossos dois discos, e demos nossos autógrafos. O do meu amigo dizia “Pela Glória do Samba”. O fã era um rapaz cheio de espinhas, o mais solitário da noite.

Incrédulos e excitados, vimos a luz se apagar, e um holofote iluminou o centro do palco, onde partículas de poeira ficaram dançando no espaço até ouvirmos os passos do meu amigo chegando devagar, para a eternidade.

Ele entra e os aplausos explodem. Há uma certa felicidade no ar.

Ele está mais magro e feliz. Em seus domínios.

O palco é pequeno, ele ajeita o microfone e não parece nervoso.

Diz boa noite com o sotaque de Bóris. Depois, conversa consigo mesmo com o sotaque de Nigel. Aí começamos a rir. Esta é a hora do jazz.

 

No casamento da irmã, ele tocou o sintetizador Casio antiquado que sempre usávamos, escolhendo um som de órgão que imitava um legítimo Hammond. A gravata berrante o enforcava. Tinha cortado a barba, restara apenas o bigode.

Ele não tocou a “Ave Maria” de Gounod como era de se esperar, e sim as notas principais de “A Whiter Shade of Pale”, do Procol Harum, e as repetiu e repetiu, com emoção. Foi assim que a irmã entrou na capela, rindo e chorando. Os filhos do noivo eram os pajens, e não conseguiam tirar os olhos do organista.

Na festa, só sucessos dos anos 80, e meu amigo dançou todos, à beira da piscina, na casa do seu pai. Parecia mais uma festa para ele, uma despedida, mesmo que ele nunca falhe, e no ano que vem sempre estará de volta, trazendo Keiko e a família, ou o que restar dela.

Seu grande número de dançarino acontece em “Love Will Tear Us Apart”, que é uma canção triste, mas não para ele, não para nós, pois meu amigo dubla Ian Curtis como ninguém. As pessoas sempre urram em volta dele, durante a dancinha epilética.

No fim da festa, no apagar das luzes, quando ajuda o pai a recolher o que sobrou de tudo, senta-se à beira da piscina e vê, entre os reflexos diáfanos da água, Keiko ajoelhada no jardim diante do templo caseiro do pai, e também Edu e Maya soltos no gramado mais uma vez, crescidos, morando em outros lugares, mas ainda se divertindo entre eles.

É só um hippie velho tamanho família que adora música, um leão desdentado com saudades de casa. A manhã está chegando. O tempo ruge.

 

 

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Ian Curtis e seu bebê

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